A atriz que interpretou Dorothy em O Mágico de Oz tornou-se um dos primeiros ícones gays da história. Quando a polícia de NY invadiu o Stonewall Inn, na sexta feira 27 de junho de 1969, eles não podiam esperar muita resistência; invasões em bares gays eram razoavelmente rotineiras.
Mas os clientes de Stonewall não estavam com vontade de cooperar com as autoridades. Naquela tarde eles tinham enterrado uma de suas mais queridas amigas: Judy Garland, cuja dor e tenacidade, expressadas tão profundamente em suas canções, refletiam suas lutas. Dessa vez, ao invés de se deixarem levar algemados, eles brigaram contra a polícia, pesar se transformando em ira, e inflamando um movimento de liberação que continua até hoje.
Essa, ao menos, é uma das explicações do porquê do levante de Stonewall acontecer nesse momento. O momento, em qualquer caso, raramente parece feito de coincidências, pois, no século 20, nenhuma performer foi tão idolatrada pelos homens gays como Judy Garland.
A cantora e atriz de 47 anos, que por muito tempo tinha sido viciada em pílulas, morreu de uma overdose de barbitúricos na manhã do último domingo, em 22 de junho, em sua casa em Londres – o que aconteceu foi quase como um trágico acidente, não um suicídio. Mais de 22.000 pessoas em luto saíram para a visitação pública em Nova Iorque na quinta e na sexta; entre eles, centenas, se não milhares, eram homens gays.
Por quase duas décadas, gays se tornaram obcecados com Judy Garland e essa obsessão criou uma espécie de comunidade. Homens gays se refeririam uns aos outros como ‘amigos de Dorothy’ – uma provável alusão ao papel de Garland em O Mágico de Oz. Para descobrir se alguém mais era gay, eles iriam mencionar as gravações de Judy Garland. Assistir às suas performances se tornou uma experiência de solidariedade para os homens gays, uma ‘comunidade de ternura’, como um dos fãs ingleses descreveu num concerto de 1960: “Isso foi como se o fato de que nós havíamos nos reunido para ver Garland tivesse nos dado a permissão de ser gay em público ao menos uma vez.”
O elo especial com fãs gays começou em 1950, quando ela foi despedida de seu estúdio, a MGM, e tentou suicídio. De acordo com o historiador cinematográfico, Richard Dyer, esses eventos simbolizaram “uma brusca ruptura com a comum e descomplicada imagem da Garland da MGM”; ela não era mais apenas a ‘garota do lado’. Pouco menos do que um ano depois, Garland fez uma volta triunfal, não em um filme, mas em uma tour de concertos, deslumbrando críticos e público igualmente, primeiro em Londres e depois em Nova Iorque.
“A história da minha vida está em minhas canções”, Garland cantou no começo de seus concertos. Canções de dor de cotovelo como “You made me love you” abriram caminho para outras canções, como a determinada “Come rain or come shine” – todas proferidas com uma honestidade emocional a que poucos poderiam resistir. Mesmo a burlesca “I don’t care” transmitia a messagem que repercutiu com os fãs gays: “Não tente me reajustar / Não há nada que possa mudar-me / Pois eu não me importo!”. Para fechar o show, Garland sentaria na beira do palco and cantaria “Over the rainbow”. Sua história de vida serviu também como um não tão escondido subtexto para os dois filmes pós-MGM, Nasce uma estrela (1954) e Na glória, a amargura (1963), ambas histórias de perdas e persistência.
Os problemas de Garland eram muito bem conhecidos: dominação por uma controladora ‘mãe de palco’, depois por insensíveis executivos de estúdio; preocupação sobre sua aparência; casamentos turbulentos; doenças, oscilações de humor, e vícios. Homens gays se relacionaram com a sua dor mas, o mais importante é que eles foram inspirados por seu indomável espírito que transformava dor em arte.
Eles responderam também a algo vagamente andrógino em suas personagens cinematográficas: ela era comumente pueril, raramente séria, e em seus números musicais ‘show-stopping’, ela geralmente usava ternos e gravatas ou calças compridas e folgadas de palhaço.
De sua parte, Garland estimava seus fãs gays, embora ela também pudesse fazer piadas com eles. “Quando eu desmaio eu tenho visões de gays cantando ‘Over the rainbow’ e a bandeira na Fire Island tremulando a meio mastro”, ela disse segundo boatos.
Vale a pena apontar que, em sua vida pessoal, Garland repetidamente era atraída por homens gays ou bissexuais. Dois de seus cinco maridos – o diretor Vicente Minnelli e o ator Mark Herron – eram gays ou bissexuais, assim como ao menos dois de seus amantes. Até seu futuro genro, Peter Allen, que ela apresentou a sua filha Liza Minnelli, demonstrava ser gay. E, embora a própria Garland fosse predominantemente heterossexual, houve rumores de que ela tivesse tido romances com mulheres, incluindo a jornalista da MGM que fora contratada para espioná-la.
A atração de Garland por homens gays pode ter ligação com sua relação com seu pai, Frank Gumm, um antigo gerente de casas de vaudeville e cinemas, que em várias ocasiões foi expulso de cidades por seus flertes com garotos adolescentes. Gumm morreu quando Judy tinha 13 anos, não muito depois dela ter assinado com a MGM. “Eu não estava perto do meu pai, mas eu quis estar durante toda a minha vida”, Garland diria depois. “Ele era um cavalheiro gay irlandês e muito bonito. E ele queria estar perto de mim, também, mas nós nunca tivemos tempo juntos”.
Talvez mais do que a maioria das ‘performers’, Garland desejava o amor de seu público. “Todos aqueles que a aplaudiram, que se levantaram e a saudaram… estavam provendo ela com uma identidade”, sugere o biógrafo Gerald Clarke. E, para muitos homens gays na platéia, ele estava, através de suas perfomances extraordinariamente honestas, retornando o favor.
Texto por Marcus Bringel