INTRODUÇÃO
É ponto de comum entendimento que o cinema seja a arte que o espectador mais identifique como real. E vários são os fatores que influenciam essa percepção, mesmo com todos os envolvidos sabendo previamente que esta é uma realidade reproduzida, mas que mesmo assim desencadeia “no espectador um processo ao mesmo tempo perceptivo e afetivo de participação” (METZ, 1983, p. 16).
Entendemos que a empatia não é exclusiva do cinema, já que ela é desencadeada por sensações e está presente nas demais artes, mas o caráter de identificação trazido ainda nos primeiros minutos se torna mais real nesta linguagem. Assim, embora seja de fato uma ilusão, a sensação ilusória de realidade é superior à experimentada em outras artes como a fotografia, a pintura e o teatro. Mas qual seriam os reais motivos que favorecem esta percepção? Vamos a eles.
O fator tempo é primordial para a materialização da identificação no espectador. E embora ele seja sempre o “consumado” (METZ, 1983, p. 404), o movimento na película faz com que aceitemos a situação como no tempo presente, mesmo sabendo que todos os fatores foram vivenciados anteriormente: nem os atores estão ali, nem os cenários, nem a história se passa naquele exato momento. Mas ele é “real” por nossos olhos o presenciarem em movimento.
Essa ilusão de realidade presente não ocorre com a fotografia, por exemplo, pois ao olharmos a mesma identificamos o objeto, podemos criar laços afetivos e nos sensibilizar, mas sabemos e aceitamos que ele é um momento registrado pela objetiva e revisitado no presente. O resultado disto é a contemplação da exterioridade, conforme explicita Barthes (METZ, 1983, p. 19), e traz indícios claros de um espetáculo passado.
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O cinema, mesmo sendo um descendente direto da fotografia, vai em sua contramão, desfilando aos olhos do espectador um espetáculo de interação imediata. A pintura, por sua vez é uma representação do real pelas vistas do artista que a concebeu, podendo ser realista ou abstrata. Mas, e o teatro?
Neste ponto, fica claro que a percepção da realidade observada no teatro e no cinema passe também pelo fator espaço. O teatro teoricamente seria a mais real das artes, tendo em vista seu caráter “ao vivo” e presença da interação direta entre cenários, palco, atores e público. O ator pode se dirigir diretamente à sua platéia, pode ocorrer o toque entre eles. Mas o problema em considerar tudo aquilo como real por parte do espectador advém do fato do teatro ser excessivamente real:
É talvez por ser o teatro excessivamente real que as ficções teatrais dão apenas uma leve impressão de realidade; ou então o contrário: conforme Jean Leirens, a impressão de realidade que o filme nos dá não se deve de modo algum à forte presença do ator, mas sim ao frágil grau de existência dessas criaturas fantasmagóricas que se movem na tela incapazes de resistir à nossa constante tentação de investi-las de uma realidade que é a da ficção (noção de diegese), de uma realidade que provém de nós mesmos, das projeções e identificações misturadas à nossa percepção do filme. (METZ, 1983, p. 23)
No teatro, essa interferência física faz com que todos os envolvidos não percam a percepção da realidade, havendo um acordo implícito de que o que ocorre no palco é uma sugestão do real quando estamos em um local com pessoas ao redor, participativas, que parecem nos lembrar o tempo todo da materialidade do espetáculo (METZ, 1983, p. 23): “Há os intervalos, o ritual social, o espaço real do palco, a presença real do ator; o peso disso tudo é demais para que a ficção desenvolvida pela peça seja percebida como real”.
O cinema, por sua vez, é favorecido por uma sala escura e isolamento total de seus espectadores, que nem mesmo podem se ver na ausência da luz. O ambiente incentiva que a visão do espectador seja direcionada ao único ponto de luz local, diferenciando-o até mesmo do espectador de outras mídias como o computador e a televisão. A diferença entre o espectador do teatro e do cinema é que o último é envolvido totalmente pela sala de projeção:
Quando o homem moderno, particularmente o habitante da cidade, deixa a luz natural do dia ou a luz artificial da noite e entra no cinema, opera-se em sua consciência uma mudança psicológica crucial. (…) O cinema ideal seria aquele onde não houvesse absolutamente nenhum ponto de luz fora a própria tela e, fora a trilha sonora do filme, não pudessem penetrar nem mesmo os mínimos ruídos. (MAUERHOFER, 1983, p. 375)
Mas como poderia o cinema, não sendo in loco e ao vivo, desenvolver tal sensação de afetividade? Sabemos que os olhares entre atores e platéia não se encontram, como no teatro, e que os diálogos e situações já foram previamente vividos. Como poderia então o cinema ampliar esse contato íntimo com o espectador, aumentando o vínculo afetivo e ampliando sua criticidade? A quebra da quarta parede seria uma dessas técnicas, sem dúvidas.
QUEBRANDO AS BARREIRAS QUE SEPARAM DO ESPECTADOR
A concepção do que seria uma quebra da quarta parede não nasceu com o cinema. O conceito desse rompimento, embora não utilizado com esse termo específico, já existia em outras artes como a pintura e a literatura. Machado de Assis, maior nome de nossa literatura, conversava com seus ilustres leitores, adentrando-os em seus contos e perguntando-lhes suas opiniões acerca dos assuntos mais triviais. Através dos diálogos diretos ele incitava-os a reagirem e tecerem seus comentários imaginários e a participar ativamente da trama que se desenvolvia aos seus olhos. Com isso, Assis rompia com ideais acadêmicos clássicos e tirava o leitor do espectro de passividade onde se encontrava em outros gêneros literários.
Da mesma maneira o teatro rompeu com esta barreira. E foi com ele que o termo passou a ser enfatizado e reconhecido como aquele momento em que o ator, quebrando a parede imaginária que o separa do grande público, dirige-se diretamente a ele, quebrando a barreira entre o imaginário e o real. Um dos grandes defensores deste posicionamento foi Berthold Brecht, que entendia que o público poderia se envolver mais e criar um teatro mais político, que pudesse transmitir conhecimento, sendo mais didático e incitando o público interagir mais criticamente acerca do que lhe era apresentado. O autor entendia o teatro como um local de libertação, trazendo reais possibilidades de unir o divertimento com a propaganda, e tal fator pode ser ampliado também ao cinema:
O fato de o “conteúdo”, de um ponto de vista técnico, se ter tornado — pela renúncia à ilusão em favor de uma virtualidade polêmica — uma parte integrante autônoma, em função da qual o texto, a música e a imagem assumem determinados “comportamentos”, e o fato de o espectador, em vez de gozar da possibilidade de experimentar uma vivência, ter, a bem dizer, de se sintonizar, e, em vez de se imiscuir na ação, ter de descobrir soluções, deram início a uma transformação que excede, de longe, uma mera questão formal. Principia-se, sobretudo, a conceber a função própria do teatro, a função social. (Brecht, 1978, pag. 9)
Tal fato acaba por potencializar a experiência, criando uma intimidade participativa do público, que sente-se atraído pela cena apresentada e pode romper a passividade exigida na narrativa clássica.
A EXPERIÊNCIA DE CHAPLIN
A carreira do britânico Charles Chaplin foi pautada em suas experiências pessoais (na concepção de seu personagem) e no aprendizado que trouxe do teatro. Sua infância foi marcada pela estréia no music hall londrino, um tipo de espetáculo que misturava vários gêneros e era extremamente popular na Inglaterra do final do século 19. Nele o contato com o público pagante era mais que evidente, tendo em vista que as palmas ou a rejeição absoluta eram decisivas para que o ator se mantivesse em cena ou fosse dispensado. Elementos que chamassem a atenção deste público exigente (e mal educado) eram primordiais à sobrevivência do ator.
E foi neste ambiente que Chaplin desenvolveu alguns personagens comuns às classes sociais que o assistiam: professores, ricos intransigentes, bêbados e outros. No Music hall ele aprendeu as regras primárias da comédia, definindo concepções de tempo correto da comédia (medido pelo volume de risos e momento em que elas eram disparadas) e gestos que indicassem os sentimentos deste público. Ele não esqueceria desses ensinamentos quando finalmente chegou ao cinema.
A experiência nos palcos foi levada para as telas quando um desajeitado Chaplin (e o próprio cinema) ainda aprendia como trabalhar com uma câmera parada, situando-se no centro da mesma quando o instinto os levava a querer ultrapassar os limites da tela retangular. Num momento em que o cinema dava seus primeiros passos, o diretor experimentava de forma instintiva como realizar filmes sem um roteiro escrito.
Em “A Night in the Show” (CHAPLIN,1915) temos uma oportunidade de testemunhar como funcionava a estrutura de um music hall londrino. Chaplin revivia um dos personagens de maior sucesso que interpretou na Companhia de Fred Karno[1]: o almofadinha que é incomodado e que incomoda no teatro. É através dele que percebemos como o público fazia parte atuante do processo e como o ator estava diretamente ligado às reações de sua platéia. E de fato disso Chaplin parecia entender muito bem.
Tanto que verificamos que o ator não se desvencilhou disto nos primeiros filmes em que dirigiu. O ator que certa vez brincou dizendo que fazia cinema com uma câmera, um guarda, um policial e uma praça, flerta com uma mulher casada e começa a delinear a controversa figura do vagabundo de seus primeiros tempos no filme “Caught in the Rain” (CHAPLIN, 1914). É fato que ele ainda aprende aqui como reagir com uma câmera ligada, e em muitos momentos olha diretamente para ela como quem procurar auxílio de um público imaginário (o do teatro, talvez?).
Dando um significado de troca de confidências, o personagem dialoga com o espectador com gestos direcionados e diretos que demonstram desde seus primeiros filmes a preocupação em manter esse vínculo com seu público. Ao incitar o espectador a tomar um posicionamento diante da cena, Chaplin continua a falar, através da pantomima[2], a linguagem de seu público e provoca-o a se posicionar como participante ativo da trama. Segundo Brecht (2005), apud Rodrigues (2010, p. 66), este é um caminho ideal do ator:
Tem [o ator] de tomar posição, intelectual e emocionalmente, em relação às personagens e às cenas. A nova orientação que se exige do ator não é uma operação fria, mecânica; o que é frio e mecânico não se coduna com a arte, e esta nova orientação é, justamente, de natureza artística. Se o ator não estabelecer uma autêntica ligação com o seu novo público, se não tiver um interesse apaixonado pelo progresso humano, essa nova orientação não poderá concretizar-se. (Brecht, 2005, p. 254 apud Rodrigues, 2010, p. 66).
Em One A. M. (CHAPLIN, 1915), o diretor surge em seu único filme solo [excetuando-se a abertura onde vemos o perfil do ator Albert Austin como o motorista que lhe deixa em seu destino]. Seu personagem não é o usual vagabundo que o consagraria, faz parte da elite e retorna à sua casa após uma noite de farra. Chegando em seu doce lar, ele tem que lidar com monstros imaginários de todas as espécies, que vão desde animais embalsamados e tapetes até objetos que parecem ter vida própria e insistem em contrariá-lo em sua ebriedade. Chegar ao seu quarto se torna uma luta contra o tempo. Neste filme de 1916 os anos parecem tê-lo favorecido, e Chaplin demonstra ter adquirido um maior domínio sobre o uso da câmera. E embora minimize o contato que utilizava-se primitivamente em filmes como Caught in the Rain, continua a direcionar seu olhar para o espectador em momentos mais pontuais, posicionando-o sobre sua situação caótica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Falávamos no início desse texto sobre a capacidade que o cinema tem em envolver o espectador, e que fatores como o tempo e o espaço contribuem de fato para o desenvolvimento de um sentido afetivo e direcionam o público que passa a identificar o filme como real. A experiência torna-se ainda mais ampla pelo uso de elementos que favoreçam o envolvimento.
Na ausência do som, Charles Chaplin teve a oportunidade de dimensionar o sentido da comunicação, através de sua gestualidade. A quebra da quarta parede em sua obra serviu para redimensionar a simpatia de um público ávido para ser descoberto, para sair do lugar comum e para ser consultado. Dando essa oportunidade, Chaplin pode exercer o que Bertold Brecht esperava do ator: ajudar seu público a desenvolver um sentido crítico.
Em suas experiências, o personagem indica a ficcionalidade em que está inserido e lembra ao espectador de sua importância diante dos acontecimentos em tela, assistindo aos fatos e desenvolvendo outros ângulos de percepção. O personagem dos filmes de Chaplin, ao dirigir-se ao seu espectador, abre uma possibilidade de compartilhamento de sensações, criando um movimento de entendimento entre o público e ele.
Vinte e dois anos após dirigir pela primeira vez, o vemos novamente em “Modern Times” (1936). Aqui percebemos um diretor mais consciente de sua obra, já amplamente reconhecido por sua genialidade e ciente das escolhas que faz. Os problemas de uso da câmera, roteiro prévio e enquadramentos já estão devidamente resolvidos. Em uma das cenas, o vagabundo é atirado para fora de um carro de polícia em movimento. Do outro lado da pista, a “garota” também escapou, e está a chamá-lo para uma fuga. Nosso personagem olha diretamente para a tela e parece nos perguntar se iríamos atender ao chamado de tão doce figura.
Como podemos perceber, analisando suas obras posteriores, o uso desse diálogo direto com o espectador iria diminuir vertiginosamente ao longo dos anos, mas jamais sumiria completamente de sua obra. Advindo do teatro, Chaplin sabia da importância de firmar laços, primeiro utilizando-os de forma intuitiva e mais tarde de maneira consciente. Percebendo o poder do cinema em divulgar ideais, ele ampliou a sensação de realidade, e continuava experimentando os efeitos em seus primeiros tempos, quando resolveu centrar em seu personagem meios que possibilitaram o envolvimento do personagem e seu espectador. Mesmo que de forma diminuta, posteriormente o vagabundo continuou a dialogar com seu público em toda sua obra.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRECHT, Bertold. Estudos Sobre Teatro. Trad. Fiama Pais Brandão.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
CHAPLIN, Charles. A Night in The Show (1915).
_______________. Caught in the Rain (1914).
_______________. Modern Times (1936).
_______________. ONE A.M. (1915).
METZ, Christian. História/Discurso (Nota sobre dois voyerismos). Trad. Teresa Machado. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
MAUERHOFER, Hugo. A Psicologia da Experiência Cinematográfica. In XAVIER, Ismail (org.). A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983
RODRIGUES, Márcia Regina. Traços Épico-Brechtianos na Dramaturgia Portuguesa: O render dos heróis de Cardoso Pires e Felizmente há Luar! de Sttau Monteiro. Araraquara: 2010.
Observações
- Fred Karno foi o empresário que deu a primeira grande oportunidade nos palcos a Charles Chaplin. Sua grande companhia itinerante trouxe aos Estados Unidos, além de Chaplin, o comediante Stan Laurel.
- Representação de uma história através de gestos, bastante utilizada na época do cinema silencioso, sobretudo nas comédias.