Di Cavalcanti (Glauber Rocha, 1977)

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Uma Reflexão sobre a ética em “Ninguém assistiu ao formidável enterro de sua quimera, somente a ingratidão, essa pantera, foi sua companheira inseparável”, de Glauber Rocha

O baiano Glauber Rocha não é uma unanimidade nacional, embora abarque a admiração de brasileiros e estrangeiros. Um dos expoentes do Cinema Novo, traz em sua obra elementos de caráter social que o colocaram em destaque dentre os maiores cineastas do Brasil. Seguindo sua veia polêmica, Glauber lançou um polêmico documentário homenageando seu amigo, o artista plástico Di Cavalcanti. Não fosse o local e a situação envolvida, provavelmente não receberia o destaque esperado e jamais ouviríamos falar sobre ele. De maneira controversa, o cineasta que mostrava-se sempre tão sensível à questões sociais e políticas, invadiu o funeral e enterro do artista em questão, empunhando uma câmera que mostrava o rosto do falecido, dos colegas e visitantes. Acompanhava ao fundo, a narração de poemas de Augusto dos Anjos e Vinícius de Moraes, entrecortadas por discursos do próprio diretor.

“Morreu Di Cavalcanti, o último grande pintor modernista. Precisamos filmar!”. Grita, em tom exaltado um diretor que, na edição, mostra recortes de imagens, músicas de diversos artistas de renome nacional como Paulinho da Viola, Lamartine Babo, Villa-Lobos e Pixinguinha. Gritos seus são ouvidos indicando a roteirização do momento: “Filma a cara dele”. Di, nome curto do documentário, pode ser acusado de tudo, menos de não mexer com quem assiste.

O poema que dá título se chama “Versos Íntimos” e pertence ao paraibano Augusto dos Anjos, um poeta com uma obra dissonante de sua época, sendo até hoje de difícil encaixe em algum movimento literário. Anjos falava sobre tudo aquilo que as pessoas não gostariam de ouvir, mas que estava ali, à espreita. Suas palavras, milimetricamente contadas e rimadas destoavam do conteúdo enervantemente maldito, com palavras que chocavam e conselhos que machucam por sua frieza: “Se a alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija!”, dirá Anjos na última parte do poema que dá nome ao documentário.

De maneira mórbida, o poema preenche com precisão a invasão de Glauber. A face sombria da morte trazida pelo paraibano é justamente aquela que muitos não querem ver. A inevitabilidade do momento final surge de maneira transparente e macabra, óbvia e triste, mostrando que por mais que o medo exista, e a evitemos, a morte sempre virá ao nosso encontro. O texto do poeta, desta maneira, serve tanto como epitáfio quanto como complementação do sentido anárquico do documentário em questão. Versos Íntimos o complementa de maneira definitiva.

Como era de se esperar, houve todo tipo de reação ao documentário final. Afinal, a maneira como a arte é compreendida é algo extremamente particular. Glauber chegou a se justificar no próprio documentário que tratava-se, não de uma invasão, mas uma celebração daquela vida que tanto contribuiu para as artes brasileiras. Alguns, como o documentarista, entenderam o movimento como uma louca homenagem, que em muito lembra o burburinho causado pela Semana de Arte de 1922, não por acaso tendo em Di Cavalcanti um de seus participantes mais ativos. Em um manifesto entregue na sessão de 11 de março de 1977, o cineasta justifica:

“Filmar meu amigo Di morto é um ato de humor modernista-surrealista que se permite entre artistas renascentes: Fênix/Di nunca morreu. No caso o filme é uma celebração que liberta o morto de sua hipócrita-trágica condição. (Di (Das) Mortes, Glauber Rocha, texto mimeografado, distribuído na sessão do filme em 11 de março de 1977 na Cinemateca do MAM)

Com um tema tão controversos, e invadindo o sentido moral, era esperado que despertasse a ira e descontentamento de grupos diversos, sobretudo a família e amigos. Esse grupo percebeu uma invasão da privacidade e desrespeito em um momento íntimo, pertencente à família e pessoas mais queridas.
Seja em qual lado se esteja, é preciso que não se esqueça uma questão. As crenças sobre a morte, ou sua passagem, como se vive ou encara são decorrentes da cultura. Não podemos deixar de observar que o caráter tanto da cultura quanto do que é aceitável é algo mutável temporal e localmente, sendo fundamental sempre manter aberto as possibilidades de diálogo sobre o tema. Para alguns grupos mexicanos, por exemplo, é um momento de homenagear seus mortos, comemorando suas existências. Para os brasileiros, a morte permanece sendo a inimiga certeira.

E mesmo com tantas informações e preenchimentos de vida, morte permanece sendo o maior e inevitável dos pesadelos. Esse é um dos motivos que torna tão perturbadora a ideia de alguém invadindo um momento naturalmente dolorido e de maneira inesperada. Como prosseguir toda a ritualística de um momento extremo quando não há o respeito mínimo ao luto?

Embora o documentário tenha recebido do júri o Prêmio de Melhor Curta-Metragem do Festival Internacional de Cannes, a Justiça Brasileira entendeu que houve desrespeito ao artigo 20 do código civil, que proíbe qualquer tipo de exposição não autorizada em imagens ou textos (abarcando aqui também as biografias não autorizadas):

“Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.”

Mas não há apenas a questão legal. Há a questão ética. Onde está o limite tênue entre o que pode um cineasta apresentar ou não? Estando ele de posse de uma material, pode trabalhar sua arte da maneira que julgar necessário? Seria ético invadir, filmar o rosto, o ritual, os amigos e recitar poemas nesse momento específico?

A questão torna-se mais profunda e tensa quando pensamos que os personagens dos documentários são atores sociais, conforme entende Nichols (p. 31), não tendo obrigação alguma de agir conforme o cineasta deseje. Ainda segundo o autor:

A ética torna-se uma medida de como as negociações sobre a natureza da relação entre o cineasta e seu tema têm conseqüências tanto para aqueles que estão representados no filme como para os espectadores. Os cineastas que têm a intenção de representar pessoas que não conhecem, mas que tipificam ou detêm um conhecimento especial de um problema ou assunto de interesse, correm o risco de explorá-las. (2005, p. 36)

Embora possa haver as marcações e direcionamentos do roteiro, o ator social teria sua liberdade assegurada, inclusive para dizer não. O cineasta teria a obrigação moral de não ferir o direito individual e deveria, mesmo com a relação contratual, não forçar pessoas a demonstrarem algo que não desejam. Ao adentrar no enterro de um amigo sem autorização, Glauber invade o espaço, tanto do morto quanto de sua família.

As questões sobre como se deve delimitar a presença ou citação de pessoas nos documentários são de extrema importância. A ética deve permear todo o trabalho, mesmo que existam documentos que autorizem o cineasta a fazer uso do material coletado. Isso porque o documento não estipula que palavras ou imagens possam ser manipuladas. Conforme nos indica Nichols:

O direito do diretor a uma performance é um “direito” que, se exercido, ameaça a atmosfera de autenticidade que cerca o ator social. O grau de mudança de com portam ento e personalidade nas pessoas, durante a filmagem, pode introduzir um elemento de ficção no processo do documentário (a raiz do significado de ficção é fazer ou fabricar). Inibição e modificações de comportamento podem se tornar uma forma de deturpação, ou distorção, em um sentido, mas também documentam como o ato de filmar altera a realidade que pretende representar. (2005, p. 31)

Diante disso percebemos que o documentário, mesmo que não tenha agradado geral acaba por cumprir pelo menos seu objetivo primário, que não é o de chocar, como podem imaginar alguns. E se Glauber Rocha falhou miseravelmente ao considerar a parte ética, invadindo não só direitos individuais de alguém quem não pode se manifestar e de toda uma família, acertou em pelo menos um item. O de provocar discussões sobre rituais e o caráter cultural das homenagens. É impossível manter-se inerte diante de sua produção, abstendo-se de uma opinião contrária ou a favor. Isso porque mesmo que de maneira agressiva, Di instiga a discussão ao despertar no espectador sentimentos contraditórios, desde a aversão, rejeição ou até mesmo o prazer oculto em ver pessoas em sofrimento.

Sendo esse o elemento vital para toda obra que se entenda arte, consideramos que o cineasta baiano conseguiu enfim o que desejava: fomentar a discussão e manter-se como um vivo exemplo do que um cineasta deve ser: provocador.

Para quem quiser assistir, o filme encontra-se disponível no youtube.

 

BIBLIOGRAFIA:

BRASIL, Lei nº 10406/02, de 10 de janeiro de 2002

Di (Das) Mortes, GlauberRocha, texto mimeografado, distribuído na sessão do filme em 11 de março de 1977 na Cinemateca do MAM. In: <http://www.tempoglauber.com.br/f_di.html>

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005.

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