Carmen Miranda: A Quem Pertence o Ícone da Cultura Brasileira?
Exploração sobre a nacionalidade e o legado de Carmen Miranda, ícone da música e cultura brasileira, revelando sua importância histórica e artística. Descubra agora!

Carmen Miranda adotou esse nome para se apresentar pela primeira vez em um programa de rádio, sem que seu pai percebesse. Tempos vigiados aqueles. O sucesso começou a tocar em sua porta depois que o compositor Josué de Barros a apresentou para a RCA, onde ela assinou um contrato para gravar o primeiro compacto, que continha “Triste Jandaia” e “Dona Balbina”. O encontro por acaso com Joubert de Carvalho renderia o samba “Taí”, que seria seu primeiro grande sucesso. Pronto. A década seguinte seria sua. Para a RCA, ela gravaria quase 300 canções, que variavam entre sambas, marchinhas e músicas juninas. Músicas escolhidas por ela e com a dubiedade tão comum em nossas marchinhas, como pode ser verificada nos versos:
“Dizem que a vizinha tem um vidão / Mas que mora escondida num barracão / Rasga o jogo e o dinheiro voa / Não é vantagem, a vizinha é muito boa.” (A Vizinha das Vantagens – Ary Barroso e Alcyr Pires Vermelho).
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“Dorme filhinho do meu coração / Pega a mamadeira e vem entra no meu cordão / Eu tenho uma irmã que se chama Ana / De piscar o olho já ficou sem a pestana.” (Mamãe Eu Quero – Marcha de Jararaca e V. Paiva).
“O Tico-Tico tá, tá outra vez aqui / O Tico-Tico tá comendo meu fubá.” (Tico-Tico – Abreu Gomes).
Carmen Miranda era nossa. Tão nossa que logo começou a aparecer em produções nacionais, como Alô Alô Brasil e na mais famosa delas, Banana da Terra (onde aparece pela primeira vez com o traje de baiana). Sucesso no Cassino da Urca , shows agendados pelo Brasil e Argentina, e logo chamou a atenção de um empresário americano da Broadway, Lee Shubert , que lhe ofereceu um contrato. O Bando da Lua, com o qual ela sempre cantara, ficaria de fora, mas Carmen pagaria do seu bolso o salário do grupo que a acompanhava melhor que ninguém. Em time que se ganha não se mexe, diz um velho ditado nosso.
Carmen Miranda era agora deles. Embarcou para os Estados Unidos em 1939, o ano em que eclodiu a 2ª Guerra Mundial e que também foram lançados alguns dos melhores filmes do cinema, como E o Vento Levou, Ninotchka e O Morro dos Ventos Uivantes. O charme de mal saber falar inglês, mas ter o carisma tropical logo lhe trouxe admiradores, muitos deles famosos. Faria uma temporada e retornaria ao Brasil, onde faria shows beneficentes, que só lhe renderam dores de cabeça e drama: diriam alguns que ela voltara americanizada. O show fora produzido às pressas e não havia tido tempo de mudar o que ela já vinha apresentando fora do país. Carmen cantara muitas músicas com letras em inglês. Vaias e mais vaias. Depressão e o retorno aos Estados Unidos, onde o carinho do dinheiro e do povo aparentemente a aguardavam. Lá passaria mais de uma dezena de anos sem vir ao Brasil, ou por medo, ou por falta de tempo, ou por ambos.
Seus shows na Broadway faziam sucesso, e ela passou a ser requisitada de uma forma quase escrava, fazendo várias apresentações em uma só noite em diversos locais. O cinema logo a descobriria, e seriam mais 13 participações em filmes, nunca como protagonista, mas sempre como a coringa alegre e, de certa forma, robotizada e de sentimentos sempre positivos. Em pouco tempo, Maria do Carmo estaria esgotada fisicamente e viciada em pílulas, cantando rumbas, sambas em inglês ou sendo apresentada como brasileira e falando espanhol.
Carmen Miranda era do mundo. Sua personagem é marcante, é inegável. Dificilmente alguém olhará a imagem da baiana estilizada com flores, frutas, balangandãs e plataformas e não dirá que já a viu em algum lugar. Como também é inegável a grande contribuição que essa personagem deu à mitificação de nossas terras como um paraíso de malandros que vivem de samba, água de coco, rumba e futebol. Isso, rumba. Rumba, que é um ritmo cubano, ou coqueiros que nestas terras vastas chegaram com os portugueses. O Brasil exportado como banana boa de comer, como “Merenda”, uma alusão minha a como eles pronunciavam o sobrenome de Carmen no “estrangeiro”.
Eles digeririam melhor a nossa Miranda se ela fosse apresentada desta maneira. Perguntávamos no início a quem Carmen Miranda pertencia, e acabamos chegando a uma resposta: a ninguém. Nem a ela mesma. Para os americanos, era a prova de que aceitavam outros povos, numa política de boa vizinhança, algo que eles sempre fizeram com astros latinos (um por vez) e que fazem questão de caricaturar; para os brasileiros, um sentimento que varia entre a mágoa invejosa por alguém que ultrapassou as barreiras do país e fez sucesso, chegando a ser uma das mulheres mais bem pagas da América, e a adoração, pelo mesmo motivo. Povo confuso somos nós.
Carmen era o produto de consumo, que começou a morrer quando foi colhido pelos Estados Unidos, 16 anos antes de ser enterrada no Cemitério de São João Batista, no Rio. Antes mesmo de se tornar o mito que hoje é, incomparável. Tão incomparável quanto é irreversível a busca por folhas que se espalham ao vento.