Judy Garland não nasceu nas coxias de um teatro, como na famosa música “Born in a Trunk”, cantada pela mesma em “A Star is Born” (1954). Mas esteve intimamente ligada a esse mundo, desde o início, com grande parte de seus passos sendo noticiado nos jornais, já que seus pais Frank e Ethel Gumm gozavam de certa aceitação como cantores, tendo inclusive possuído um teatro. Marcou a sua vida, além de sua fama e problemas com remédios que acabaram levando-a à morte, o seu relacionamento com sua mãe.
Não se engane com a foto montada em um estúdio. As duas tinham um relacionamento complicado. Ethel terminaria seus dias sozinha, abandonada pela filha famosa e trabalhando em um supermercado, enquanto Judy (ainda) colhia os frutos de seu trabalho. Ethel, que estivera junto a ela desde o início, incentivando-a e a acompanhando de um lugar para o outro, foi sumariamente ‘demitida’ por Judy, quando esta cresceu. Mas, antes que alguém comece a julgar a atriz como uma filha desnaturada, vamos aos fatos que a levaram a isso…
“Ela deve ter saltado de mesas e rolado 10 mil degraus de escada. Não havia um único dia na casa dos Gumm em que mamãe não narrasse com deleite, à sala cheia de visitas, suas tentativas de impedir meu nascimento.” (Shipman, p. 26)
Assim Judy descrevia a sua vinda “acidental” ao mundo.
O casal Gumm passava por dificuldades financeiras e os dois ficaram desesperados ao saberem que além das duas filhinhas (Mary Jane e Virginia), Ethel agora estava grávida novamente em 1921. O casal pensara em um aborto em uma clínica, o que era tremendamente mais perigoso que nos dias atuais, mas acabaram convencidos por um amigo da Igreja onde tocavam e cantavam, a não fazer isso. Dentre os motivos que faziam Ethel pensar em não ter esse filho, o casamento que já estava com as pernas fracas. Frank era homossexual, e apesar de gostar da esposa, não conseguia evitar ter alguns namorados.
Ethel não desejava ter, dessa maneira, mais nenhum filho com ele. No final o conselho foi ouvido, e eles deixaram que a nova criança viesse ao mundo.
Só que aí veio uma segunda tensão. O casal queria tanto um menino dessa vez! Tanto, que já fazia planos! Para Frank, seria um companheiro, em meio a uma família só de mulheres. Para Ethel, seria uma versão perfeita de Frank: com todas as suas qualidades de artista e nenhum dos seus defeitos… Cada um com seus planos e…
A decepção veio às 5:30 da manhã de 12 de junho de 1922. Era apenas… uma menina, a quem deram o nome de Francis (se homem fosse, seria Frank, assim como o pai).
Nascida nessa família artística, e com as duas irmãs já se apresentando no pequeno teatro do pai, Judy estrearia aos 2 anos, cantando no desfile anual no Mercado de Itasca. Há várias versões para o fato. Segundo Shipman, a garotinha entrou correndo no palco para cantar “jingle bells” e não conseguia mais sair de lá. A platéia vibrou, e ela quase que não parava mais de cantar. Isso a marcaria pra sempre.
Mais tarde ela se uniria às irmãs, e faria um trio chamado The Gumm Sisters. Logo o casal se separaria, e Ethel seguiria viajando com as garotas e acompanhando suas apresentações. Segundo Judy, o pai não queria que elas viajassem, e esse teria sido um dos motivos da separação. Memória diferente da de sua irmã Virginia, que dizia que o pai também as incentivava. Mas das três irmãs, só Judy realmente tinha a arte nas veias, o que pode ser verificado nessa rara apresentação das The Gumm Sisters:
As irmãs acabaram deixando a carreira artística. Judy, que agora deixava de ser Francis e se tornava oficialmente Judy Garland, fez testes para a MGM. Passou. Mais uma vez sua mãe ia junto, e parte do que Judy ganharia seria dado à ela, como uma espécie de empresária. Caso Ethel quisesse um aumento, era do salário de Judy que este era retirado. Presume-se, aqui abro um parêntesis enorme, e digo PRESUME-SE que Ethel sabia das pílulas dadas por L.B.Mayer e que acabaram por viciar a atriz pelo resto de sua vida.
Com tendência a ser gordinha, a garota foi levada ao departamento médico e passou a ter uma dieta rígida. Enquanto adolescentes de sua idade podiam e deviam comer bem, ela fazia dietas de restrições, além de tomar remédios para emagrecer. Só que os remédios para emagrecer a deixavam excitada demais, fazendo-a perder o sono. Foram passados remédios para dormir. Os remédios para dormir não a deixavam acordar. Foram passados remédios para acordá-la. E assim criou-se um círculo vicioso que acabaria por levá-la à morte, anos depois. Enquanto Mickey Rooney devorava sanduíches enormes, ela tinha que se contentar com um prato se sopa ralo.
Trabalhando incessantemente na MGM, Judy se ressentiu por não ter sido avisada da morte de seu pai; culpou Ethel por não a ter avisado da morte de seu pai, ocorrida enquanto ela se apresentava numa rádio. Culpou a mãe também por esta ter se casado, com um amigo próximo do casal, um ano depois da morte do marido. Exatamente um ano após a morte do marido.
A atriz era uma das descobertas dos estúdios, que depois do enorme sucesso com “O Mágico de Oz”, não queria que ela crescesse. Durante um bom período, sua imagem virginal, que já rendia bons créditos para os estúdios, deveria ser mantida. Ethel, como mãe empresária, a acompanhava e vigiava em todos os seus passos, verificando amigos, possíveis namorados, roupas, hábitos… enquanto dava-lhe tudo quanto a garota lhe pedisse. Em suma, uma gaiola de ouro.
O resultado disso não poderia ter sido menos catastrófico: numa fase de transformação, tal relação com a mãe tornou-se insuportável. Judy não sabia resolver seus problemas sozinha, não tinha voz ativa, começava a ter uma vida paralela ao fazer coisas escondida da mãe e do seu chefe, o poderoso L. B. Mayer. Por causa de Ethel, Judy não tinha a capacidade de manter sozinha seus compromissos diários. O resultado foi o primeiro de vários casamentos frustrados.
Judy casou-se com David Rose para fugir de L. B. Mayer e de sua mãe. Os dois literalmente fugiram juntos, causando meio mundo de mágoas de todos. O que desenvolveu-se foi uma separação gradativa de sua mãe. Primeiro Ethel vivia em um local à parte na casa da filha. Depois ela foi para outro local.
“Descobri-me numa casa enorme. Era assustador. Eu não sabia nada sobre cozinhar ou cuidar de uma casa. Mamãe sempre foi uma dona de casa exemplar, e nunca me pediu para fazer nada”. (Shipman, p. 157)
Posso imaginar a forma de Judy ao narrar isso, pois ela era conhecida por seu bom humor. E chego até a vislumbrar as pessoas rindo ao ouvir alguns causos seus, embora em sua voz tivesse um tom de mágoa oculta. E Judy herdara de sua mãe, justamente dela, de Ethel, a mania de rir e fazer piada de seus momentos mais tristes, mascarando uma dor que permanecia lá.
A atriz do Mágico de Oz deu um basta em sua relação com a mãe, dispensando seus trabalhos e cortando relações com ela. Passaram vários anos sem se encontrar, até que ela recebeu a notícia, por uma de suas irmãs, de que a mãe havia falecido de ataque cardíaco em um estacionamento da loja onde trabalhava. Estava sozinha e ganhava pouco mais de 12 dólares por semana para se sustentar. Apesar de não se falarem há anos, a filha entrou em depressão ao saber do que acontecera. Não, não era isso que desejava. Não, não era isso que jamais desejaria a quem quer que fosse. Mas não havia mais tempo de se reconciliarem.
Fonte: Judy Garland, de David Shipman.