Monsieur Verdoux (1947)

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Depois de tantos anos vendo e revendo filmes de Chaplin e conversando com pessoas a respeito, verifico tristemente que pouca gente conhece trabalhos do cineasta além do vagabundo. Ah, o vagabundo acabou por se tornar sua marca registrada, e com ele apareceu em mais de 70 filmes, inspirando tantos outros com a sua figura e genialidade. Mas há sim um mundo além do vagabundo, como filmes como este:

Monsieur Verdoux começou a surgir na mente dele durante uma conversa com Orson Welles, que tinha uma ideia vaga sobre um filme sobre o Barba azul: o homem que enganava as mulheres para tão logo deixá-las. Chaplin guardou a sugestão, e muitos anos depois começou a trabalhar a ideia, desenvolvendo um roteiro (dos poucos que ele escreveu). contava a história de um banqueiro francês, demitido após uma grande crise, casado com uma deficiente física e que para ganhar a vida decidira tomar dos ricos aquilo que passara toda a vida contando dos outros: dinheiro.

Matar era apenas uma das possibilidades. Apenas mais uma profissão. Mas a pergunta que lhe permeia subliminarmente é: e porque não? A história baseava-se em um personagem real, Henry Landrú (1869-1922), que foi condenado à morte na guilhotina por ter assassinado mais de 10 mulheres e seduzido outras tantas, e começa quando a família Couvais encontra-se preocupada com o sumiço de uma irmã já idosa, que casou com um homem chamado Varnay, e solicita a ajuda da polícia para encontrá-la. A primeira aparição de Verdoux no filme é num jardim, cuidando das plantinhas enquanto sua esposa é queimada no incinerador. Ponto para a sutileza do homem que é capaz de matar pessoas, mas penaliza-se ao machucar um animal em que ele quase pisa. Varnay, na verdade é um dos tantos nomes adotado pelo Verdoux, que já se empenha em conquistar novas presas.

O que recebe, ele aplica na Bolsa de valores. Sua sorte declina quando conhece Annabella Bonheur (Martha Raye), que de tanta sorte que tem, sempre consegue escapar do assassinato. Na verdade, boa parte do filme é dedicada às tentativas de Verdoux em livrar-se dela. São nesses momentos que podemos nos deliciar com alguma comédia, pois o filme em si não é feito para o riso. Em alguns momentos, a dupla é tão imbatível que torna-se um duelo à parte a interpretação de ambos. Martha, comediante das boas, entra num duelo de igual para igual como Chaplin poucas vezes em filmes anteriores deixou que o fizessem, chegando algumas vezes a assumir o total controle da cena.

Com Martha Raye

Empenhado em descobrir novos meios de matar, ele busca alguém em quem testar um novo veneno, que mataria as vítimas sem que se fosse descoberto o motivo. Conhece uma bela mulher na rua, convida-a para ir aos seus aposentos, mas desiste de usá-la como cobaia ao verificar que, como ele, ela também se sacrificaria pelo marido. Por amor, assim como Verdoux, ela também mataria. Ironicamente, ao lhe dar abrigo numa noite de chuva, ela lhe tem como um bom homem, de grandes princípios e que lhe planta no coração uma esperança já esquecida de que na humanidade há pessoas boas.

Com a polícia em seu encalço, Verdoux acaba se entregando ao se deixar descobrir em um restaurante. Já não tinha motivos para lutar, pois com a guerra sua amada esposa e filho haviam sido mortos e todo o seu dinheiro, investido na Bolsa, perdido. Com a esposa, morria-lhe também a vontade de lutar pela vida. Condenado à morte por seus crimes, o personagem fala, com o cinismo que lhe é característico, que seu erro foi ter matado pouco. E uma pessoa por vez. Tivesse matado muitos, como se faz nas guerras, ele estaria sendo gloriado.

Nesse ponto nos sentimos tentados a pensar que quem na verdade estava falando era o próprio Chaplin, que na juventude havia sido condenado pela opinião pública por não querer participar de uma guerra que, afinal, não lhe traria nenhuma melhora pessoal. Um soco no estômago da sociedade, que condecora alguns por terem ceifado vidas. A igreja não é esquecida, com um sutil comentário do condenado que, ao ver o padre chegar para lhe ministrar os últimos sacramentos, pergunta-lhe: “Em que posso ajudá-lo, padre?”. Mas quando Verdoux segue na estrada ao caminho da guilhotina, desta vez acompanhado de dois policiais, é o vagabundo que vemos tropeçar em algumas pedras no caminho. É dele que nos lembramos.

Falar de técnicas para criticar os métodos de Chaplin é dar um tiro no pé. Isso porque com o tempo, o cinema evoluiu, novas técnicas foram surgindo e ele continuava lá, no jeitão dele de fazer cinema. Quando ele fez Monsieur Verdoux já havia o tecnicolor de E o vento Levou, de Selznick e as inovações de Cidadão Kane de Orson Welles. Mas o velho Chaplin, que antes afirmara que fazia um filme apenas com uma garota bonita e uma praça, ignorava e seguia com seus velhos métodos. Nunca se sentiu seguro em delegar tarefas a outros, preferindo ele mesmo escrever, dirigir, produzir, atuar, compor trilha sonora. Tudo. Se pudesse, ele mesmo faria todos os personagens, da criança ao bandido.

Talvez porque acreditasse mais na força da mensagem que passava. Para Chaplin, quando se tem algo interessante a passar, nada deve desviar o foco, incluindo-se grandes extravagâncias de movimentações de câmeras, que deveriam permanecer estáticas, para que não se desviasse a atenção na história.

Seja como for, o público cativo de seus filmes foi tomado de assalto pela grande ausência do personagem já conhecido e não compareceu aos cinemas para prestigiá-lo. O filme chegou a ser proibido em várias cidades, por ser considerado imoral, chegando até a haver piquetes em frente aos cinemas, de veteranos católicos que se postaram armados a fim de evitar que outras pessoas entrassem. Além disso, várias partes do filme foram cortadas e o cineasta teve que refazer muitas cenas que os censores julgaram serem altamente sugestivas como frases em que Verdoux é chamado por uma de suas esposas para a cama.

Algumas personagens tiveram sua história mudada, ou ocultada, como a antiga profissão de sua esposa Annette, que era prostituta antes de ganhar na loteria ou como a garota que ele salvou da fome, que pelos planos iniciais de Chaplin, se trataria de uma garota de programa. Ficou a sugestão: afinal,o que levaria uma jovem mulher a estar àquela hora da noite na rua , sozinha e aceitar a proposta de um homem a entrar em seus aposentos, ainda chamando-o de bom por lhe fornecer dinheiro?

Se busca o vagabundo, não o assista. Nesse filme, o que resta dele são tão somente os gestos, já tão predominantemente chaplinianos, herança do personagem tantas vezes vivido na época do cinema mudo: ele gesticula e fala muito mais com a expressão do que com os lábios. E quando o faz, fala-nos muito mais o cidadão Chaplin do que o personagem Verdoux. Noutro aspecto, não podendo ele mesmo se ver entregue às gargalhadas por seu personagem não ter esse fim, mas o de mostrar um homem concentrado apenas em seu trabalho, ele se vale de Martha Raye, tornando-se para ela o que outros faziam por ele antes: uma escada, fazendo surgir então o riso em boa parte da trama.

Quando falo que Monsieur Verdoux é um dos melhores filmes que ele já fez, verifico a incredibilidade daqueles que nunca o viram. Chaplin falando? Chaplin sem ser… Carlitos? Sim, Chaplin sem ser Carlitos, e falando, falando muito. E bem. Arrisco-me a dizer que analisar sua obra sem citar Monsieur Verdoux seria vê-la pela metade, e mais, negar a si próprio a possibilidade de ver algo além do vagabundo.

 

Por Carla Marinho para o jconline (2009).

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