Um travelling nos conduz da cidade de Nova York até a garrafa de whisky pendurada na janela de Don Birnam. Ele arruma sua mala, mas o pensamento está focado na garrafa. É preciso arrumar um meio de guarda-la em seus pertences antes de viajar naquele final de semana. Mas a marcação acirrada de seu irmão Nick (Phillip Terry) não deixa. A chegada de sua namorada Helen (Jane Wyman), faz brotar um plano. Don os incentiva a irem juntos a um espetáculo, a adiarem a viagem para as seis horas e com isso ter tempo para executar seu plano. Mesmo desconfiado após encontrar a garrafa na janela, Nick e Helen o deixam sozinho. É o suficiente para que Don ache dinheiro e parta para comprar mais bebidas.
Percebemos com essa introdução o que é a luta diária de Don e das pessoas que o amam. Ele é um alcoólatra, um escritor frustrado que gasta seus dias a procurar meios de sustentar seu vício que dia após dia lhe mata. Ficamos sabendo que já são seis anos de luta, e a compreensão de sua namorada, bem como a vigília constante de seu irmão já não funcionam. E quando finalmente consegue escapar, Don mostra que a preocupação dos dois não é a toa. Na mesa do bar, rodeado daquilo que mais ama, ele revela ao barman e a nós, como conhecera Helen, como ela descobrira seu vício intermitente, como ele se sente vazio e desmotivado a seguir em frente. Como a bebida influencia diretamente em seu bloqueio como escritor.
Billy Wilder voltava de Nova York quando comprou um livro para passar o tempo. Tratava-se de “The Lost Weekend”, de Charles Jackson. O romance contava um caso de um homem e um final de semana desastroso entregue às bebidas. Ao descer em Hollywood, ele tinha certeza que estava diante de um tema fantástico para um próximo filme. Entrou em contato com o roteirista Charles Brackett e chegaram à conclusão que, para ser aceito, era preciso ocultar o caráter homossexual do personagem.
Era também uma maneira de revisitar e tentar entender o drama que viveu ao lado do roteirista Raymond Chandler, com quem conviveu durante Dougle Indemnity. Billy não soube lidar com o colega alcoólatra e a relação foi tremendamente tumultuada. O alcoolismo, tema de tantos filmes, mas na maioria das vezes caricata, merecia ser falado de uma forma séria. E aqui, ele é tratado como o grande problema que é, afligindo milhares de pessoas, e causando a decadência moral e física. Através de Don percebemos que sair disto não é uma tarefa fácil e tampouco depende apenas de “força de vontade” ou busca por algum Deus ou algo do tipo. É uma doença que merece ser tratada e vista como tal.
O cineasta entregava-se totalmente às suas obras. Escrever era um exercício diário que ele fazia questão de dividir com outros. Ao longo de sua vida dois parceiros seriam marcantes: Charles Brackett e I. A. L. Diamond. Ambos grandes roteiristas, premiados e que não deixavam nada a dever ao gênio do grande diretor. Brackett trabalhou com Billy entre 1936 e 1950, num total de 13 filmes, muitos dos quais clássicos absolutos como A Incrível Susana (1942), Farrapo Humano (1945) e Crepúsculo dos Deuses (1950).
Uma característica fundamental de cada uma das obras de Wilder era a amarração do roteiro e os diálogos ágeis e pontuais. A cidade de Nova York, o casaco de veludo que Helen vestia sempre ou até mesmo a garrafa de bebida colocada de maneira displicente por Nick são sinais de que nada era por acaso. Sempre havia um porquê e uma mensagem clara do que viria. Por isto não havia possibilidades de que mexessem em seu texto. A agilidade com que a câmera flutua consegue nos colocar dentro da história. E quando dá um close na face tremenda e suada de Nick, nos damos conta do nível de seu desespero. Apesar de se passar em uma grande cidade, a sensação é de um constante sentimento de claustrofobia. Porque é esse o sentimento que permeia o tempo todo o personagem, preso dentro de si mesmo.
A passagem de tempo é mostrada, desta maneira, de uma forma extremamente inteligente. Don revela, no bar, que gosta de todo o processo que envolve o prazer da bebida. Ama sobretudo as marcas deixadas por ela, os círculos. E estes são utilizados para demonstrar tanto o tempo decorrido quanto a quantidade de bebida ingerida.
Embora ache o título brasileiro muito bom, sempre preferi o título original. The Lost Weekend mostra um final de semana decisivo, em que um homem vai ao fundo do poço em toda sua decadência, tornando-se um verdadeiro farrapo.
Como já era esperado, o filme não agradou a diversos grupos. Primeiramente os distribuidores de bebidas, que temiam não vender mais. Segundo Wilder, eles teriam oferecido à Paramount 5 milhões de dólares para não lançar o filme. O diretor sugeriu que teria aceitado se tivessem oferecido a ele. Deus, como não ama-lo? E se a indústria se incomodou, também vários grupos moralistas infernizaram a Paramount exigindo que o filme não fosse lançado. Eles temiam que fosse um incentivo ao vício.
Mesmo com tantas pressões, Farrapo Humano foi lançado e ganhou os Oscars de Melhor Filme, Direção, Roteiro e Ator. Billy afirmou que sabia o tempo todo que Milland receberia o prêmio. E não foi por menos. O ator dedicou-se estudando a finco o tema, frequentando hospitais e sujeitando-se a dietas restritivas para ganhar aquele olhar abatido que vemos durante toda a película. Como resultado também ganhou o Globo de Ouro e o prêmio de Melhor ator de Cannes.
Farrapo Humano foi lançado pela Classicline em dvd e Bluray e pode ser adquirido em qualquer loja do ramo. Você também pode encontra-lo na loja oficial da distribuidora. Clique na imagem para adquirir:
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