Creio eu — talvez, você também concorde —, que a toda a estupidez humana, está mais do que representada pela figura da guerra. Ganância, orgulho, ódio, violência contra outrem, descaso, estupidez, mesquinharia, estupros — sim, estes ocorrem no campo de batalha, incluindo aqui, crianças —, uso de alucinógenos, tudo isso, encontramos na pessoa deste flagelo, que vem a ser tão velho quanto à própria história da humanidade. Odeio guerras — tenho pavor a esta. Sei que brincava quando menino de soldado — como todo menino brinca. Mas, jamais, mesmo na minha inocência, apoiaria tamanha desgraça. Uma maldição que só traz prejuízos e infortúnios a nossa civilização — e, por incrível que pareça, vendida é, como se fosse a consagração dos heróis, um benefício para a humanidade.
A guerra… os senhores da guerra… com suas inúmeras desculpas: necessário se faz derramar sangue para assim obtermos a paz… Estamos defendendo aquele pequeno país petrolífero de terroristas… Oh, por favor, não visamos os poços que lá existem, não visamos baratear a gasolina em nosso país, por favor, não pensem assim… É, esquecemos algumas minas na África, mas, o que vocês queriam que fizéssemos, sacrificássemos nossos soldados, tanques, a procura de uma ou duas… mil minas?
Calhordas, patifes, animais sem alma e coração! As primeiras cenas de guerra que assisti — guerra de verdade, não de cinema —, foram às transmitidas pela Rede Globo — entre 1990 e 1991 —, precisamente a Guerra do Golfo — você deve estudar sobre ela hoje em dia. Bem, eu nunca estudei sobre esta: assisti a carnificina “ao vivo” pela televisão (gritos, mísseis, clarões em meio às trevas da noite). E a cada cena — seja dos iraquianos presos ou soldados americanos que sofreram nas mãos dos primeiros —, ficava chocado com a crueldade sem significado que ocorria (se é que a crueldade pode ter um motivo/significado). Por isso, hoje quero falar de um filme — que todo soldado, todo o senhor da guerra, todo o cidadão — deveria assistir pelo menos uma vez na vida — aviso, não é um filme leve, mais chocante e atormentado — lançado em 1971: Johnny Vai À Guerra (Johnny Got His Gun), na verdade, mais do que um filme: um grito contra toda e qualquer guerra.
Primeiro o Romance
Era para durar um mês, era para terminar logo, a Primeira Grande Guerra. E lá iam eles, jovens garotos ingleses para as cabines de alistamento, levando consigo a propaganda de que aquele campo, aquelas trincheiras, eram locais de heroísmo, bravura, aventura e emoção. Mas, a guerra não terminou em um mês… nem nos próximos trinta, sessenta, noventa dias consecutivos, ela prosseguiu. E lá estava, toda uma geração de meninos, em meio a trincheiras, tendo ratos correndo aos seus pés, com febre, doenças, matando para não serem mortos — o lado oposto, também assim pensava.
Quando o horror terminou, quando os corpos que ainda podiam ser enterrados, assim foram. O mundo hasteou a bandeira — tampou ouvidos, fechou os olhos para o horror, e continuou em frente, sem levar consigo lembranças daqueles dias, ou pelo menos, fingindo já não mais lembrar de tais. Hollywood também emudeceu — fez-se cego e surdo —, isto é, até que 1924 os grandes produtores souberam de uma peça chamada O Preço da Glória de Maxwell Anderson e Laurence Stallings, que fizera enorme sucesso, e, resolveram investir suas fichas em produções que retratassem “os áureos tempos de bravura”.
Claro, que por mais realista que parecessem estas películas — algumas muito, mas, muito boas, como no caso de Wings (Asas), o momento máximo de Clara Bow como atriz, e Sem Novidade No Front — o sofrimento vivido, a dor, não eram expostos até a medula. E assim, seria por muito tempo.
Numa manhã qualquer, um jovem inglês — nascido em 1905 — de nome Dalton Trumbo é tomado de sobressalto por um artigo no jornal, que relata a visita a um hospital de veteranos da guerra pelo príncipe Wales, que desejava conhecer um soldado em especial. O que havia de tão especial assim neste? Bem, o mesmo perdera todos os membros e sentidos durante a guerra, e jazia sobre uma cama tinha anos no Canadá.
Tendo por fio condutor esta idéia, Dalton escreveu o maior manifesto pacifista que se tem notícia até hoje, intitulado Johnny Vai À Guerra (Johnny Got His Gun, em inglês no original) — algo que Roger Walters, tentou fazer quando ainda membro do Pink Floyd, no muito criticado Final Cut. O título tem um significado mais forte em língua materna, pois, era usado para incentivar a juventude americana — isto no final do século dezenove —, a se alistarem — podemos traduzir como: Joãozinho Pegue Aquela Arma, ou algo semelhante.
Sucesso imediato de crítica e público, fez com que seu autor ganhasse um grande prêmio literário — ironicamente, dois dias após receber este, uma nova guerra explodia — tão aterradora e cruel quanto a de 1914 —, o mundo não ouvira a mensagem. Tal como o personagem de Trumbo, as nações estavam cegas, surdas e mudas. O resultado seria o Holocausto, as bombas nucleares, logo mais, a Guerra Fria, da Coréia, Vietnã…
Enquanto o mundo “enlouquecia”, o Governo acusava Dalton de “comunista”, e durante anos, veio a ser perseguido por este. Entre investigações, depoimentos, foi levando a sua vida, contribuindo para com a sétima arte em obras como Spartacus e A Princesa e o Plebeu — sua habilidade como escritor, fora-lhe muito útil enquanto roteirista, garantido-lhe o sustento. Mas, a necessidade de alerta o mundo para o horror das guerras, ainda gritava dentro de seu peito. E o grito tornou-se insuportável naquele ano de 1971, quando a claquete fez audível, e como diretor ele pediu: silêncio no estúdio… gravando.
Imagens Que Valem Mais Do Que Palavras — Sinopse
Você conhece aquele velho ditado: “uma imagem vale mais do que mil palavras”? Pois, Johnny Vai À Guerra (1971), pode ser exemplo para tal. Trumbo adaptou o livro escrito por ele em 1939 para a tela — conheço os dois. Sinceramente, o romance fica no chinelo quando transportado para o filme. As cenas tornaram-se ricas, mais emocionantes. Parte graças a uma idéia genial (o que tecnicamente chamamos de dois planos): o presente, o sofrimento atual vivido pelo personagem, é representado em preto e branco. Enquanto suas alucinações, flashbacks, sonhos, surgem em cores. E você reza para que a tela mantenha-se colorida, pois, o presente é aterrador: um torso apenas em uma cama, cercado de médicos. Um ser humano vivo, preso dentro de si, sem braços, pernas, olhos, ouvidos — nada. Ele sente tocarem em seu corpo, ou melhor, no que resta do seu corpo, mas não há meio de se comunicar. E o desespero só aumenta, enquanto conhecemos como o fato ocorreu, através de suas memórias.
Estando em meio da guerra, Joe Bonham (nome completo do personagem) tenta fugir de uma trincheira no intuito de não ser morto. Porém, antes assim fosse, pois, ao pisar numa mina, seu jovem corpo é reduzido a quase nada. Como dito anteriormente: seus braços, pernas, foram arrancados. Sua face destruída (a mina arrancou seu maxilar). Está cego, surdo e mudo também.
Quando aquele resto de ser humano chega ao hospital — dá arrepios só de recordar a cena. Faço aqui, uma confissão: assisti o filme uma única vez, de tão chocante que este foi —, os médicos não sabem o que fazer, pois, não há meio de saber se ele está vivo ou em coma profundo. De modo que, este passa a ser mais um objeto de curiosidade/estudo, do que um paciente na verdade. Os dias transcorrem. Certa manhã, o soldado acorda — todavia, não há meio de informar aos que estão ao seu redor que ele não está em coma, pois, vê-se preso em seu próprio corpo.
O desespero é imenso. O suicídio parece à única fuga. Mas, até isto dele foi tirado, fora-lhe feito uma traqueostomia. Explico: os médicos fizeram uma pequena abertura na traquéia do paciente. Logo depois, introduziram nesta um pequeno tubo, geralmente de plástico, possibilitando assim a passagem de ar. Como, o personagem não tinha braços, não havia meio de tirar esta, o sufocamento torna-se impossível.
Sem possibilidades de escapar da sua prisão, resta apenas a ele relembrar sua vida — aqui entram as cores — até o fatídico dia. Conhecemos o menino sorridente e sua família. A linda namorada. Seus sonhos. O porque alistou-se: “queria lutar pelo bem da pátria”, a destruição do seu corpo. Entre suas memórias, Joe passa a ter delírios. Outro flagelo a atormentar-lhe em sua própria prisão. Certa manhã, nota que pode movimentar o que sobrou-lhe da cabeça e, tenta se comunicar com o mundo exterior golpeando-a sem piedade contra a cama, enviando um S.O.S. contínuo, até a exaustão. É a cena mais marcante do filme. A enfermeira ao seu lado na cama, vendo-o contorcer-se desesperadamente.
Leva tempo, até perceberem o que ele quer dizer. Os médicos pensam ser convulsões. Isto é, até o momento que notam serem um tanto quanto sincronizadas aquelas batidas. Quando consegue resposta e, fica sabendo o que lhe ouve, faz um apelo: que o mostrem ao mundo, no intuito de conscientizar a humanidade do quão horrível é a guerra, ou que o matem, pois, não suporta mais ficar preso dentro de si.
Premiada em Cannes no ano de 1971 (Prêmio Especial do Júri/Prêmio da Crítica), a película foi banida do nosso país em tempos de Ditadura — os militares não gostaram nada do que viram. As poucas fitas que rodaram por aqui, eram contrabandeadas, ou cópias de cópias de cópias — a maioria das vezes sem legenda. O que em si, não tirava o poder das imagens. Hoje, a obra-prima de Trumbo está disponível em DVD — o preço ainda é meio salgado, mas dá pra ser encontrado via Internet.
Johnny Vai À Guerra, foi eleito pela revista Aventuras Na História (Editora Abril), um dos cem maiores filmes de guerra de todos os tempos. Ficou em centésima posição, sendo que a revista abre com Apocalipse Now (retrato da loucura da desumanização dos soldados). Nada mais justo: ambos refletem que a guerra não leva a lugar nenhum. A lugar nenhum mesmo. Descanse em paz, Joe. Descanse em paz.
Colaboração: Ricardo Steil — Itajaí/SC