Os Insaciáveis (1964)

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Howard Hughes não foi um homem fácil. Nascido em berço de ouro, trazia em si todas as complicações ocasionadas por uma mãe que excedia nos cuidados com o filho: tudo era excesso. Após a morte do pai, herdou milhões de dólares que ele muito bem administrou e investiu. Com seu dinheiro foi engenheiro, diretor, produtor de cinema, industrial, tornando-se uma das personagens mais intrigantes da história mundial recente. Fez história e sua história foi escrita e reescrita por diversas mãos que não as suas.

O cinema não poderia deixar de lado uma personagem em potencial como esta. E pelo menos duas vezes tivemos a sua personalidade nas telas, uma delas implicitamente, outra claramente biográfica. Em “Os Insaciáveis”, best-seller de Harold Robbins dirigido por Edward Dmytryk,  o magnata aparece sob a vestimenta ficcional de Jonas Cord. Herdando a indústria com a morte do pai, com quem mantinha uma relação de ódio e mágoa, o industrial passa a administrar com braço de ferro os seus negócios, não importando o que lhe venha pela frente: mulher, amigos, companheiros de trabalho. Nada.

Ele é o homem sem sentimentos, que parece vingar-se do mundo pelo que sofreu durante a infância e pelo medo consciente que tem de enlouquecer. Sucesso também pelo alto teor erótico, em 1964 o livro foi para as telas, sob a direção de Edward Dmytryk. George Peppard, que brilhara em “Breakfast at Tiffany’s” (Bonequinha de Luxo), surge como o protagonista, trazendo com ele a marca do ódio, que acompanha todo o desenvolvimento da trama.


Em comum com Howard, temos aqui a trajetória desenvolvida após a morte com o pai, o investimento no cinema e na aviação. Decerto Howard era um homem difícil, como podemos supor ao ler sua história, mas o era por problemas também psiquiátricos. Peppard encarna aqui, perfeitamente, um homem forte e duro, que desenvolve desde o início uma relação de ódio e atração com Rina Malone (Carol Baker), segundo ele alguém que é capaz de odiar como ele e de desprezo por Mônica Wintrop (Elizabeth Ashley), com quem se casa e abandona pelo simples fato desta querer amá-lo e com ele constituir uma família.


Cord não é um homem fácil de ser amado. O momento marcante do filme acontece no final, quando Jonas tem um embate com seu melhor amigo, Nevada, que, cansado de ver durante tantos anos seu desrespeito e prepotência, resolve mostrar-lhe a verdade nua e crua: diferente do seu pai, a quem ele tanto odeia e renega, Jonas não possui nada. O final, como ficção, é totalmente hollywoodiano, com a redenção do homem mal e o reino da paz. Destaque para Peppard que perpassa todos os momentos com maestria, fazendo-nos quase odiar Cord, embora saibamos dos motivos que o levam a agir daquela forma.

Em 2004, Scorsese resolveu contar a história do Aviador, sob uma ótica sem subterfúgios da ficção: Leonardo DiCaprio é Howard Hughes, com todas as suas manias e desejos, amantes e acessos de loucura. Uma interpretação intensa e o seu melhor papel no cinema, depois do marcante “Gilbert Grape – Aprendiz de Sonhador”.

Leonardo Di Caprio em O Aviador


Como Jonas Cord, inspirado no magnata, aqui ele assume também a postura de um homem verdadeiramente obcecado pela perfeição, que parece desconhecer os limites impostos pelo dinheiro, mas não é só alguém com sérios traumas de infância e com medo de enlouquecer: Howard Hughes tem uma doença evolutiva, TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) e microfobia. O magnata de Scorsese traz a dubialidade do gênio atormentado, recluso em um mundo paralelo e criado por sua imaginação, doente porém com idéias à frente de sua época.

DiCaprio tem como ponto alto as cenas que se seguem no acesso de loucura de Howard; trancado em seu cinema, ele bebe compulsivamente leite (a única bebida que aceita naquele momento, enfileirando as garrafas de um modo grotesco), assiste aos seus filmes repetidamente, entrega-se à sujeira que tanto nega, evita falar com todos com o pretexto de não se contaminar e entrega-se à evolução de doença.
O espectador assiste a tudo incólume, em parte pela distância que se coloca a personagem, um traço escolhido pelo diretor para levar a história a um nível de narração. E apesar das dificuldades enfrentadas por Howard, ainda assim permanecemos sem potencializar um sentimento de rejeição, raiva ou amor por ele. Ao contrário de Jonas Cord de “Os Injustiçados”, por quem desenvolvemos uma antipatia desde cedo.

Dizíamos no início que Howard Hughes não era um homem fácil. Interpretá-lo também não. Para isso tivemos, ao seu nível, duas interpretações magníficas, diferenciadas porém com um traço comum, a intensidade. Algo imprescindível a um homem que foi ele próprio uma personagem.

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