Em 1929 o diretor Luis Buñuel chocou a muitos com o seu Um Cão Andaluz. Já assisti algumas vezes e posso dizer que ele se torna-se inexplicável a cada vez que eu o vejo. Essa é mesma a intenção. E não é apenas pelo surrealismo de suas cenas, é também pela narrativa diferenciada, seguindo um fluxo dos pensamentos. Eles não seguem uma sequência de início, meio e fim, mas para entendermos melhor uma história contada, nosso cérebro entende melhor se ela surgir de maneira sequencial. Um Cão Andaluz não tem um início. Começa pelo meio, volta no tempo alguns anos, avança mais alguns e depois retorna para um ponto intermediário entre um e outro. Em nenhum momento da história do cinema foi estabelecido que os filmes devem conter uma sequência que inclua na ordem o começo, o meio e o fim. Segundo Godard, “A história deve ter um começo, um meio e um fim, mas não necessariamente nessa ordem.”. Agora você me pergunta, porque essa introdução imensa se eu irei falar sobre “Passagem para Marselha”? Vamos aos pontos.
Passagem para Marselha (1944)
Quando encontramos uma história que não segue essa sequência que achamos natural, ficamos confusos e tendemos a achar que o filme não é bom. Essa poderia ser uma explicação sobre os motivos que fizeram o filme dirigido por Michael Curtiz ter sido considerado um fiasco. Mas seu problema não era só esse. Passagem para Marselha tem uma sequência que embora não seja linear, é até lógica, mas traz como principal problema a confusão causada pelo excesso de flashbacks, um dentro do outro, dificultando a nossa capacidade de tentar organizar a história. Se nem eles conseguem conta-la, como nós iremos entendê-la?
O filme inicia-se com o capitão Freycinet (Claude Rains), responsável por uma base de um esquadrão aéreo que irá narrar para um visitante a história de Maltrac e seus amigos. Voltando no tempo ele nos apresenta o navio Ville de Nancy e seus tripulantes, apresentando suas personalidade uma por uma. Em determinado momento da viagem avistam um barco à deriva com cinco tripulantes. Recolhidos e cuidados, os rapazes contam uma história que não convence nem a menor das criaturas: seriam mineiros venezuelanos. Freycinet os chama para uma conversa, e entre um gole e outro, todos vão contando as suas verdadeiras origens. O que temos a partir daí é mais um flashback dentro do outro.
O tom patriota comanda desde os créditos iniciais, com a exaltação aos homens e mulheres da França que lutaram contra o nazismo em busca de um país livre. Estaria com lágrimas nos olhos se o idioma falado durante todo o filme não fosse o inglês. Pode ser uma problemática que só eu ache ruim, mas é estranho falarmos de franceses como se lá estivéssemos e termos um núcleo formado apenas por pessoas que falam uma língua estrangeira. Talvez isso explique um Bogart sem sombra de sotaque.
“Eu voltarei para ela”, diz um Bogart arrasado de saudades da mulher, para ouvir em seguida um patriótico “Ela não espera por um covarde, espera pelo homem corajoso que viu partir”. Mas não há muito o que se dizer quanto a isso, já que foi produzido quando a França ainda estava sob o domínio dos nazistas, e o enfoque era justamente aquela “forcinha” dada aos franceses que, embora machucados em sua honra, ainda resistiam aos desmandes do ditador. Era um tema necessário naqueles dias de opressão.
Vale dizer que após o sucesso inesperado de Casablanca, parte de seu elenco reunido em um novo filme sobre a guerra era algo bastante esperado. Estão aqui o já citado Bogart, Peter Lorre, Claude Rains e Sydney Greenstreet. E está também o amor em meio ao conflito. Michèle Morgan é Paula, a mulher por quem Maltrac irá se casar. Michèle era a primeira opção para interpretar Ilsa em Casablanca, mas seu cachê elevado levou os produtores a optarem por Ingrid Bergman. Só que a história de amor neste aqui é algo secundário, e serve apenas para ampliar a visão de patriotismo. As coincidências param por aí.
Bogart tem uma performance preguiçosa e seu personagem é um jornalista tedioso que não esboça um só sorriso nem quando na presença de sua amada Paula. Estamos em tempos de guerra, parece não haver motivos para sorrisos, não é? E temos Peter Lorre, um dos meus atores mais queridos. O austríaco que chamou a atenção como o assassino de criancinhas em M – O vampiro de Düsseldorf traz uma performance sólida como o prisioneiro espirituoso que solta aquelas frases de efeito no meio dos tiroteios mas que é mão pra toda obra. Uma pena que em em pouquíssimas produções ele tivesse o destaque e o protagonismo que merecia.
Eu sempre costumo dizer que não ligue para o que dizem sobre determinado filme. Assista-o e trace sua opinião verdadeira. Opiniões são formadas de acordo com os gostos pessoais ou visões sobre a cinematografia. Consegui entender cada um dos pontos deste filme, e embora não concorde com boa parte deles entendo sobre sua mensagem. Passagem para Marselha não é um dos melhores filmes assinados por Michael Curtiz, mas merece ser visto como uma visão da época. Sobre como a pátria deveria ser mais importante do que a liberdade de seguir sua própria vida.
~ Passagem para Marselha está sendo lançado em DVD pela Classicline e pode ser adquirido em qualquer loja do ramo.