É noite. Estamos em uma fazenda seringueira na Malásia. Seringueiros descansam após mais um dia de trabalho. A câmera passeia primeiro entre eles, para em seguida encaminhar-se, tímida e lentamente para a casa grande. Ao aproximar-se ouvimos um grito, um tiro. Um homem cambaleante sai da porta, cai no alpendre. Uma mulher com rosto impassível atira-lhe uma, duas, três vezes enquanto observa seu corpo cair inerte. A câmera desliza entre os rostos assustados dos seringueiros e o rosto duro da mulher. Ela parece em um transe. Curiosos começam a chegar. Calmamente, ela pede para que avisem a seu marido que ela matara um homem. Entra em casa.
Esta é a sequência inicial que se tornou lendária. A introdução de todos os elementos que alimentarão a trama de Leslie Crosbie (Bette Davis), uma mulher que irá contar friamente sua versão do assassinato daquele homem. E esse será seu erro. Leslie relata que Geoff Hammond adentrara em sua casa e flertara com ele na ausência do marido. Sentindo-se ameaçada, ela pegara a arma e atirara em nome da honra. Ninguém tem dúvidas quanto à sua honestidade, mas mesmo assim ela é levada para uma cadeia onde aguardará o julgamento. Tampouco seu marido, Robert Crosbie (Herbert Marshall) duvidará de sua verdade. Porém, o excesso de confiança e aparente frieza faz com que alguns comecem a duvidar da veracidade de seu relato. O que há por trás de sua conversa?
Aos 32 anos, BettE Davis mostrava uma grande maturidade como atriz. E não era por menos. já havia ganho os dois Oscars de sua carreira, embora também merecesse um por sua participação neste. E aqui ela era dirigida por um de seus diretores preferidos: William Wyler. Mas nem isso faria com que os bastidores fossem calmos. Bette, conhecida por interferir diretamente nos roteiros e direção, queria fazer as cenas à sua maneira. Não fosse a mão firme de Wyler, ela mudaria drasticamente algumas cenas. Mas por incrível que pareça, esse caráter duro era justamente o que lhe atraía em Wyler.
Por sua vez, Wyler estava cercado por grandes profissionais. Um deles foi o experiente diretor de fotografia Tony Gaudio. Foi ele quem ajudou a compor a famosa cena de abertura, auxiliando na iluminação com tons místicos. A trilha sonora, por sua vez foi assinada por outro grande nome do cinema, o compositor Max Steiner. Ele se tornou um grande vencedor da Academia, levando três prêmios ao longo da carreira: The Informer (1935), Estranha Passageira (1942), e Since You Went Away (1944). Além de Wyler, era o compositor preferido de outros diretores como Michael Curtiz e John Ford.
The Letter era uma história fantástica, mas que não poderia passar desapercebida pelos puristas de plantão. Adaptado da obra de W. Somerset Maugham, o enredo sobre uma mulher adúltera que mata seu próprio amante era um pouco demais para o cinema daqueles tempos. Antes dessa, houve uma adaptação feita em 1929, e que trazia Jeanne Eagels e Reginald Owen nos papéis principais. A participação de Jeanne lhe rendeu uma indicação póstuma ao Óscar, a primeira na história da Academia. Herbert Marshall, que na versão de 1940 interpreta o marido traído, na versão de 1929 era o amante morto.
E se em 1929 era difícil fazer uma adaptação, em 1940, no auge do Código Hays, a história teve que ser alterada para que fosse aprovada e liberada para o público. Até porque, uma mulher trair e sair impune seria inconcebível para os padrões. Mas não foi somente esta a mudança significativa, a amante chinesa transformou-se em uma esposa euro-asiática interpretada por Gale Sondergaard. Mesmo assim é um dos filmes que merecem ser vistos pela entrega nas interpretações e direção fantástica de Wyler.
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