Cabíria anda tristemente pela estrada. Lembra-me o doce Carlitos, solitário em sua caminhada sem fim. Não é por acaso. Eles são dois sobreviventes numa vida que não facilita os renegados da sociedade. Cabíria é uma prostituta cheia de sonhos, que deita em seu leito e pensa que ainda tem chance. Quando ela ri, rimos juntos. Quando ela chora, queremos pegá-la no colo. Noites de Cabíria traz apenas mais uma das tantas personagens fortes e tristes de Federico Fellini, o grande diretor italiano que nos trouxe grandes presentes. E Cabíria não seria a mesma, não mesmo, se não fosse interpretada pela grande Giulietta Masina.
O nome dela está tão ligado ao do seu marido que muitas vezes esquecem a grande atriz que Giulietta foi além daqueles papéis especialmente criados para ela por Fellini. Mas o fato dela ser sua principal musa não a impedia de passear entre os demais cineastas, e entregar-se de corpo e alma às suas personagens numa Itália ainda se recuperando da guerra. Do topo de grandes atrizes italianas, destaco Giulietta e a grande Anna Magnani. Em casa ela era a mulher que conseguia domar de certa forma do difícil e grande (em altura e qualidade) Federico Fellini. Mas havia o amor.
A pequena Giulia Anna Masina nasceu na pequena San Giorgio di Piano, que faz parte da região metropolitana da Bologna. Era 22 de fevereiro de 1921 e ela vinha ao mundo rodeada de uma família que amava as artes. Além de Giulia, seus pais, um violinista e sua mãe, uma professora, tinham mais três filhos mais velhos. Em uma família musical, a pequena teve aulas de vários instrumentos musicais desde cedo, embora tenha passado boa parte da infância com sua tia.
As atuações tiveram início quando ela se apresentava nos palcos da Universidade Sapienza de Roma. Ela fazia Filosofia e Letras, mas o maior prazer era mesmo suas pequenas peças. Findada a universidade, ela ligou-se a um grupo teatral, onde aprendeu o ofício de atuar. Foi no início da década de 40 que ela participou de uma seleção para uma novela na rádio.
Foi nesse período que ela conheceu Fellini, que escreveu sua primeira série para a rádio, “Cico e Pallina”. A química foi instantânea e pouco tempo depois eles estavam casados. Ela queria muito ser mãe. Assim que se casou, engravidou, mas perdeu a criança quando caiu de uma escada. Pouco tempo depois teve um filho, que chamou de Pier Federico. Infelizmente a criança viveu apenas um mês. Depois disso, ela não conseguiu mais engravidar. Resolveu dedicar-se à arte e ao marido.
O ano que marcou seu casamento, 1943, marcou também o início de sua grande notoriedade. Após trabalhar no teatro e rádio, chegava a hora dela entregar-se ao cinema. Em Paisà (1946) de Roberto Rossellini, ela fazia uma pequeníssima participação no episódio 4 do filme. Bom, era um começo, mesmo que ela não tivesse sido nem creditada. Ela voltaria a trabalhar com o diretor anos depois, quando Masina atuou ao lado de Ingrid Bergman.
Ela trabalharia inicialmente ao lado de seu marido em Abismo de um Sonho (1952). Curiosamente, ela interpretava pela primeira vez a prostituta Cabíria, embora ainda distante da que conheceríamos mais profundamente anos depois. Mas também o próprio Fellini ainda acertava seu estilo que o marcaria.
Após trabalhar com Giuseppe Amato, Carlo Lizzani eo próprio Rossellini, ela conseguiria emplacar de verdade ao ser dirigida por Fellini em A Estrada da Vida (1954), o mais chaplinesco filme do diretor. No filme ela interpreta Gelsomina, uma moça pobre e ingênua. Tratada como um objeto por sua família, acaba sendo vendida para Zampano, um rude artista circense. Sua vida parece destinada a passar de mão em mão, sempre em busca de um amor que nunca chega.
O homem, por sua vez, é extremamente grosseiro, rude, e não se importa em continuar o ciclo de animosidade que cerca nossa personagem. Zampano ensinará a Gelsomina todos os truques circenses que conhece. Juntos irão cair na estrada, e trabalhar a troco de migalhas. A chegada de um Louco fará com que o sorriso volte aos lábios de Gelsomina, causando ciúmes em Zampano, que passará a maltrata-la ainda mais. Apesar de uma recepção morna inicialmente, La Strada recuperou-se e acabou recebendo o Oscar de melhor filme estrangeiro. Masina não receberia nenhum prêmio por sua interpretação. Essa talvez seja a maior injustiça de todas.
Mas foi somente com sua atuação em Noites de Cabíria, em 1957, que ela ganharia seu primeiro prêmio significativo: a de melhor atriz no Festival de Cannes. Durante alguns anos ela dedicou-se quase que inteiramente à sua vida familiar mas retornaria em meados da década de 60 no quase psicodélico Julieta dos Espíritos (1965), premiado pelo Globo de Ouro daquele ano.
Na década de 40 ela chegou a trabalhar com Marcello Mastroianni, e foi com emoção que os dois, que frequentavam o mesmo coração de Fellini, se reencontraram no emocionante Ginger e Fred (1986). No filme, eles interpretam uma dupla de dançarinos que na juventude dançavam músicas de Ginger Rogers e Fred Astaire, e que já idosos, se reencontram para se apresentarem em um programa de tv.
Foi quase uma despedida deles. O filme que de certa forma critica a televisão, e mostra o quanto a velha geração sentia-se desconfortável com a chegada dessa nova forma de comunicação, fez sucesso por trazer atores tão queridos. Masina ganhou o prêmio de melhor atriz pelo Sindicato Nacional Italiano de Jornalistas de Cinema.
A década de 80 Masina dedicava-se mais aos cuidados de Fellini, que após sofrer dois derrames, entrou e coma e faleceu em 31 de outubro de 1993. Tinha 73 anos. Apenas cinco meses depois, Giulietta o seguiria, vitimada por um câncer no pulmão. Em seu funeral foi tocado o tema feito por Nino Rota para o filme A Estrada da Vida. Ela e seu marido repousam juntos no Cemitério de Rimini, ao lado do pequeno filho.