Blanche Dubois: A Psicologia por Trás do Personagem de ‘Um Bonde Chamado Desejo’
Por que Blanche Dubois permanece tão relevante? Explore a genialidade de Tennessee Williams através deste personagem inesquecível.

Blanche Dubois: A Complexa Personagem de “Um Bonde Chamado Desejo”
Os olhos de Blanche Dubois, portas abertas para o mundo, carregam um vazio profundo – daqueles típicos de quem acumula todas as dores do mundo. São olhos que confundem os sentidos, que se recusam a entender os próprios motivos, que acusam a vida por sua injustiça. Revelam sentimentos contraditórios, um roteiro paralelo de existência, distante da realidade comum e doentia. São olhos que enlouqueceram para, paradoxalmente, encontrar alguma sanidade longe da tortura do cotidiano.
Na epopeia grega, os heróis enlouquecem por fatores externos – tomados pelo desejo, pela fúria, pelo sofrimento extremo, fogem para outras realidades. Assim ocorre com nossa heroína de dupla personalidade, interpretada primeiro por Jessica Tandy no teatro e depois por Vivien Leigh no cinema. Em sua loucura, Blanche testa quem a rodeia: ora frágil, ora cruel, deixando cicatrizes nas almas alheias.
A Dupla Personalidade de Blanche Dubois
Duas mulheres numa só: a delicada e a loucura personificada. A vida nunca foi fácil para Blanche – nunca é para quem sente cada sopro de vento como uma queimadura. Como diria Fernando Pessoa:
“Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
Ó campo! Ó canção! A ciência
E a consciência disso! Ó céu!”
Um Bonde Chamado Desejo (A Streetcar Named Desire) chegou ao cinema em 1951, com Vivien Leigh reprisando seu papel da versão londrina. A trama gira em torno do relacionamento conturbado entre Blanche, sua irmã Stella e o cunhado misógino, Stanley Kowalski. É a fragilidade da água batendo contra a pedra.
Blanche deixa Mississippi, pega o bonde “Desejo” e vai morar com o casal em Nova Orleans. Pobre, após perder tudo, tenta reconstruir-se levando na mala seus poucos pertences e cartas de um homem imaginário – aquele que viria salvá-la.
O Conflito com Stanley Kowalski
Os conflitos com Stanley começam cedo. Ele é o oposto de Blanche: grosseiro, insensível, um animal (nas palavras dela). Um daqueles homens que odeiam mulheres, mas sentem prazer em dominar as mais sensíveis. Ele não acredita em sua loucura e tenta expor seu passado “podre”, como se isso justificasse sua crueldade.
Blanche sabe do perigo que ele representa, mas é tentada a provocá-lo. O pequeno apartamento torna-se insuficiente para tanta tensão. Em Harold Mitchell (“Mitch”), ela vê uma possível fuga: um casamento convencional, uma vida nova, o esquecimento do passado.
Mas seu primeiro marido havia se suicidado após ela flagrá-lo com outro homem – trauma que desencadeou sua “doença de nervos”. A busca por proteção torna-se uma obsessão, alimentada por sonhos infantis de recomeço.
A Queda Final: O Passado Exposto
Os problemas se intensificam quando Stanley descobre seu passado. Ele investiga, desmoraliza Blanche perante Stella e destrói suas últimas ilusões. A peça revela três faces da complexidade humana:
- Stanley – violento e dominador
- Stella – submissa e dividida
- Blanche – em busca de sua essência perdida
Entre todos, Blanche nos domina e perturba. Ela nos faz refletir sobre nossas próprias máscaras, nossas angústias escondidas, nossos segredos guardados como caixas de Pandora.
O Fim: A Benção dos Estranhos
Quando é levada a um sanatório, Blanche é amparada por um médico desconhecido. Em sua frase final, ela resume toda uma vida de desilusão:
“Nunca duvidei da benfeitoria de estranhos.”
Nunca – mais do que daqueles que dizem amá-la, mas nunca a entenderam. Sim, Blanche. Às vezes, são os estranhos que nos aceitam. Por não nos conhecerem, não nos julgam.
* Publicado inicialmente na Revista Continente