Êxito Fugaz (Young Man with a Horn, 1950)

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Dorothy Baker havia escrito um romance baseando-se na vida do trompetista Bix Beiderbecke, um artista genial que por causa das dificuldades, entregou-se ao alcoolismo  e acabou falecendo precocemente, alcoolizado e pobre, aos 28 anos em 1931. Foi somente algumas décadas depois que seu trabalho passou a ser redescoberto, e hoje ele é considerado um dos maiores músicos do século 20.

Não cheguei a ler o livro da Dorothy, portanto, não tenho uma grande noção de como ela trata a vida de Beiderbecke, seus relacionamentos ou a veracidade dos fatos. Levarei em conta apenas, a sua adaptação para as telas, feita em 1950. Antes de adentrar nos pormenores, vamos à sinopse geral:

Rick Martin (Kirk Douglas) é um garoto que cresce sem os pais, na casa de sua irmã mais velha. Sozinho, busca nas ruas algo que lhe interesse. Ao adentrar em uma igreja, vê uma senhora a tocar piano. Com facilidade, e sozinho, aprende as notas principais. Mas um piano para um garoto pobre é algo impossível de possuir. Passando numa loja, o jovem pergunta ao vendedor qual o instrumento mais barato. Ele lhe responde que é o trompete. Rick começa a trabalhar para adquirir o instrumento, enquanto escuta no outro lado da rua o jazzman Art Hazzard (Juano Hernandez). Logo Art se torna seu mentor e amigo, e ao longo dos anos irá lhe ensinar todas as técnicas para tocar perfeitamente o instrumento.

Ao crescer, Rick passa a trabalhar em bandas de jazz que tocam em casas noturnas. Mas é notório que ele não se adapta a dividir o palco com outros músicos, querendo sempre inovar em suas notas. Para os demais, ele queria aparecer mais do que eles. Rick tem a certeza que é perfeito. Sua perfeição é posta à prova quando ele é apresentado por sua amiga e cantora Jo Jordan (Doris Day) à bela mas arisca Amy North (Lauren Bacall). Jo, que tem um interesse genuíno em Rick, fica surpresa quando descobre que os dois se casaram. Daí para frente, o homem que parecia ter um futuro brilhante, transforma-se em um grande e fracassada figura.

Tentarei fazer uma análise mais pessoal sobre os personagens, portanto, se você não quiser ter alguns spoilers, não leia os próximos parágrafos:

Êxito Fugaz, dirigido tão soberbamente por Michael Curtiz, é um exemplo de como os roteiristas conseguiam, sempre que queriam, burlar o burro código de censura Hays.  Na adaptação feita para o cinema foi preciso fazer alguns ajustes, sobretudo sobre a personagem Amy North. Lésbica, Amy deseja, no entanto, experimentar tudo o que pode em sua vida. Ela está sempre em busca de algo com o que se identifique por sentir-se incompleta. Sua personalidade faz com que tente, por isso, trocar constantemente de cursos, ter uma vida instável e considerar-se “dura” no que se refere às mais delicadas coisas da vida.

Amy não toca piano, por exemplo. A partir daí percebe-se a dificuldade que seria um relacionamento com um músico. Mesmo sabendo do óbvio ela tenta, guiada pelo espírito curioso que a cerca. Esta é a mais rica personagem do enredo, cujas falas consideradas dúbias na época, tem um cunho estritamente real sobre sua sexualidade, dúvidas e modos de lidar com isso. “Sinto inveja de você”, dirá ela certa vez a Rick, talvez baseando-se na notória frase de Freud sobre o que as mulheres sentiriam dos homens. Na década de 50 isso era o que havia de moderno em se tratando de psicologia, não por acaso curso que Amy tentava fazer.

Ela complementa a fala dizendo que “tentei viver ao seu lado para talvez me tornar igual a você”. Claro que sua natureza grita mais alto e ela não consegue. Ao passo que diz invejar o marido, ela também suspira ao olhar a doce Jo Jordan, que considera nunca ter tido dúvidas em sua vida, e que a leva de uma maneira mais leve. “Uma mulher que dorme e acorda sabendo em qual porta vai entrar e sair”. Muitos desejam, e conseguem ser assim.

Assim como Rick, que tem em seu instrumento musical uma espécie de extensão do membro sexual. Estaria eu viajando nesta parte? O subtexto do roteiro diz que não. Tanto que Amy, saciada e exausta da experiência que nunca tivera com um homem, volta ao seu mundo de experiências, deixando um Rick arrasado por não conseguir mudá-la. Rick deseja o impossível: a perfeição e mudar a natureza das pessoas. É egoísta e carente ao mesmo tempo.  E quando não consegue o que deseja, cai.

Lauren Bacall chegou a afirmar que na época não sabia que sua personagem era lésbica, de tão sutil que era seu texto. Não sei realmente se ela era tão inocente a esse ponto (alguém que tem Kirk Douglas como amigo e Humphrey Bogart como marido dificilmente seria tão inocente). Mas quem sou eu para duvidar de Betty? Explanei mais sobre essa personagem por acha-la a mais rica de toda a história e por ser revelativa em todos os aspectos.

Pronto, pode voltar a ler se não viu o filme:

Para um filme realizado em 1950, este traz um texto afiado e que até hoje não sei como conseguiu passar pela censura. Mas que bom que conseguiu. Algumas curiosidades que encontrei sobre as filmagens são ditas pelos próprios atores. Segundo Doris Day, ao passo que relembrava com sua personagem seu início de carreira quando cantava em bandas, também sentiu-se deslocada por causa do tratamento dado a ela por Bacall e Douglas. Ex-namorados na vida real, os dois eram muito amigos (e o foram até o final da vida da atriz), e pareciam fazer questão de esnobar Doris, que dava seus primeiros passos. Ela tinha uma antipatia particular por Kirk, que dizia sentir-se superior aos demais atores do elenco.

Kirk, por sua vez, chegou a relatar que seu comportamento condizia com o seu personagem, cuja entrega foi total. Mas quem o conhecia de perto sabia que o ator, que estreara quatro anos antes nas telas, de fato era difícil de ser dirigido, assim como Bette Davis. Ele gostava de se impor e, por perfeccionismo ou chatice mesmo, dificilmente abria mão de suas opiniões. Mesmo no início da carreira, acredito que ele já se impunha. O traço só foi ficando mais forte ao longo dos anos.

Michael Curtiz, cuja marca era a busca da perfeição, teve o manejo suficiente para lidar com as jovens estrelas. Com o auxílio do diretor de fotografia Ted D. McCord e a iluminação perfeitas, incluiu alguns trechos memoráveis e tomadas inesquecíveis, como aquela em que a luz incide diretamente sobre Doris Day de perfil, enquanto esta canta. Ou então as externas, quando um cambaleante Rick, volta às ruas. Nestas tomadas externas vemos ao seu redor uma grande cidade e um músico em decadência.

Comumente, neste tipo de cena, utiliza-se o efeito plongée, mostrando o personagem de cima para baixo, para mostra-lo em sua decadência; Mas Rick sempre é filmado de baixo para cima, o que denotaria grandeza. Curiosamente o efeito funciona, e o que nos sobra é a grandeza de sua grande dor, de sua grande derrota, em consonância à cidade que permanece gigante ao seu redor. 

A iluminação, tanto interna quanto externa, contribui para o engrandecimento das cenas. Amy é constantemente filmada em sua penumbra, enfatizando seu espírito fiel às suas dúvidas, enquanto Jo, a mulher ideal, surge iluminada e em seus trajes puros, já criando um estilo que a atriz teria ao longo de sua carreira de virgem. Os aplausos, neste caso vai para Milo Anderson, que preparou os figurinos de ambas as atrizes principais. A excelente direção de arte de William Wallace, que imprimiu estilo nos ambientes, sobretudo na revelativa casa de Amy e Rick.

Tudo isso faz com que Êxito Fugaz continue sendo, excetuando-se as nuances comuns de sua época (questões psicológicas tratadas ao longo do relacionamento do trio principal), um filme extremamente interessante em nossos dias. Um dos melhores do cineasta.

Êxito Fugaz foi lançado pela Classicline em um dvd que traz uma capa fabulosa e imagem perfeita. Apenas na versão legendado, pode ser adquirido em qualquer loja do ramo, ou através do site da própria distribuidora. Para adquirir, clique na imagem abaixo:

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